Por que NÃO? (lendo Zygmunt Bauman)
É um período de véspera pra mim e, por isso, estou no meio de algumas leituras. Inevitavelmente e evidentemente, ler análises sobre o mundo é sempre uma oportunidade de pensar sobre o cotidiano.
O fato é que realmente não sei de onde veio essa vitória do NÃO. Não foi produção da mídia. Não foi campanha patrocinada indiretamente pelo governo. O plebiscito, até onde eu sei, foi legítimo e refletiu a vontade da maioria dos eleitores brasileiros.
O que Zigmunt Bauman tem a ver com isso? Eu lia "Modernidade Líquida". Só estou no início, mas, apesar da impressão um pouco sombria que me passa, a leitura é fascinante. Bauman caracteriza o tempo em que vivemos como o de uma modernidade que flui, escorre, esvai-se, respinga, transborda, vaza, inunda, borrifa, pinga, é filtrada e destilada. Uma modernidade que, diferentemente dos sólidos, não é facilmente contida. Ela contorna certos obstáculos, dissolve outros e invade ou inunda o caminho.
Padrões, códigos e regras estão cada vez mais em falta. Eles não são mais dados como o eram há pouco tempo. O peso da trama dos padrões e a responsabilidade pelo fracasso caem agora nos ombros dos indivíduos. Individualização moderna virou pleonasmo. Emancipação virou lei de primeira ordem. Emancipação essa, que seria sinônimo de liberdade e que, por sua vez, virou uma defesa à autonomia e ao mais completo individualismo. Liberdade de escolha. Direito de ser e de permanecer diferente. Desregulamentaram-se e privatizaram-se as tarefas e deveres modernizantes. Em alguns momentos, poderia se dizer que o direito de ser diferente passou a se confundir com a maldição de ser desigual. Hoje, não se deve olhar para trás nem para cima. Todas as suas possibilidades e limitações estão dentro de você. "Riscos e contradições continuam a ser socialmente produzidos; são apenas o dever e a necessidade de enfrentá-los que estão sendo individualizados".
Além disso, o homem moderno deve ser incapaz de parar e ainda menos capaz de ficar parado. O poder passou a estar relacionado a estar em todo lugar e a não estar em lugar algum ao mesmo tempo. Velocidade. Completa falta de compromisso. Culto à flexibilidade, à mobilidade. "Numa notável reversão da tradição milenar, são os grandes e poderosos que evitam o durável e desejam o transitório, enquanto os da base da pirâmide - contra todas as chances - lutam desesperadamente para fazer suas frágeis, mesquinhas e transitórias posses durarem mais tempo." Enquanto Weber fala da invasão e da dominação da racionalidade instrumental, Marx teorizou o papel determinante adquirido pela economia.
O poder público passou a ser um mero mantenedor dos "direitos humanos" individualizados. A libertação das pessoas as tornou indiferentes como diria Alexis de Tocqueville. Hoje, compartilham-se publicamente intimidades. A vida pública se reduz à exposição pública de questões privadas. O cidadão está cada vez mais distante do indivíduo. Assiste-se a uma corrosão lenta da rede social e da cidadania. O que passou a ser de interesse público? Garantir interesses privados?
E o que isso tudo tem a ver com a lavada do NÃO? Achei ter encontrado uma das grandes razões para esse resultado no meio dessa leitura. Escolheu-se o direito a escolher. Eleitores confirmaram querer continuar sendo indivíduos. Será que ainda são cidadãos? Por outro lado, a razão também pode ser encontrada em outro efeito da liberdade ilimitada: "por que cuidar de proibir o que será, de qualquer modo, de pouca conseqüência?"
E o que fazer diante de tudo isso? Não sei. Bauman diz que a liberdade não é uma escolha, mas sim uma fatalidade. "Na terra da liberdade individual de escolher, a opção de escapar à individualização e de se recusar a participar do jogo da individualização está decididamente fora da jogada".
Por enquanto, só estou curiosa pra chegar até o final da obra.
BAUMAN, Zygmunt. Modernidade Líquida. Trad. Plínio Dentzien - Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001.