segunda-feira, outubro 24, 2005

Por que NÃO? (lendo Zygmunt Bauman)

É um período de véspera pra mim e, por isso, estou no meio de algumas leituras. Inevitavelmente e evidentemente, ler análises sobre o mundo é sempre uma oportunidade de pensar sobre o cotidiano.

O fato é que realmente não sei de onde veio essa vitória do NÃO. Não foi produção da mídia. Não foi campanha patrocinada indiretamente pelo governo. O plebiscito, até onde eu sei, foi legítimo e refletiu a vontade da maioria dos eleitores brasileiros.

O que Zigmunt Bauman tem a ver com isso? Eu lia "Modernidade Líquida". Só estou no início, mas, apesar da impressão um pouco sombria que me passa, a leitura é fascinante. Bauman caracteriza o tempo em que vivemos como o de uma modernidade que flui, escorre, esvai-se, respinga, transborda, vaza, inunda, borrifa, pinga, é filtrada e destilada. Uma modernidade que, diferentemente dos sólidos, não é facilmente contida. Ela contorna certos obstáculos, dissolve outros e invade ou inunda o caminho.

Padrões, códigos e regras estão cada vez mais em falta. Eles não são mais dados como o eram há pouco tempo. O peso da trama dos padrões e a responsabilidade pelo fracasso caem agora nos ombros dos indivíduos. Individualização moderna virou pleonasmo. Emancipação virou lei de primeira ordem. Emancipação essa, que seria sinônimo de liberdade e que, por sua vez, virou uma defesa à autonomia e ao mais completo individualismo. Liberdade de escolha. Direito de ser e de permanecer diferente. Desregulamentaram-se e privatizaram-se as tarefas e deveres modernizantes. Em alguns momentos, poderia se dizer que o direito de ser diferente passou a se confundir com a maldição de ser desigual. Hoje, não se deve olhar para trás nem para cima. Todas as suas possibilidades e limitações estão dentro de você. "Riscos e contradições continuam a ser socialmente produzidos; são apenas o dever e a necessidade de enfrentá-los que estão sendo individualizados".

Além disso, o homem moderno deve ser incapaz de parar e ainda menos capaz de ficar parado. O poder passou a estar relacionado a estar em todo lugar e a não estar em lugar algum ao mesmo tempo. Velocidade. Completa falta de compromisso. Culto à flexibilidade, à mobilidade. "Numa notável reversão da tradição milenar, são os grandes e poderosos que evitam o durável e desejam o transitório, enquanto os da base da pirâmide - contra todas as chances - lutam desesperadamente para fazer suas frágeis, mesquinhas e transitórias posses durarem mais tempo." Enquanto Weber fala da invasão e da dominação da racionalidade instrumental, Marx teorizou o papel determinante adquirido pela economia.

O poder público passou a ser um mero mantenedor dos "direitos humanos" individualizados. A libertação das pessoas as tornou indiferentes como diria Alexis de Tocqueville. Hoje, compartilham-se publicamente intimidades. A vida pública se reduz à exposição pública de questões privadas. O cidadão está cada vez mais distante do indivíduo. Assiste-se a uma corrosão lenta da rede social e da cidadania. O que passou a ser de interesse público? Garantir interesses privados?

E o que isso tudo tem a ver com a lavada do NÃO? Achei ter encontrado uma das grandes razões para esse resultado no meio dessa leitura. Escolheu-se o direito a escolher. Eleitores confirmaram querer continuar sendo indivíduos. Será que ainda são cidadãos? Por outro lado, a razão também pode ser encontrada em outro efeito da liberdade ilimitada: "por que cuidar de proibir o que será, de qualquer modo, de pouca conseqüência?"

E o que fazer diante de tudo isso? Não sei. Bauman diz que a liberdade não é uma escolha, mas sim uma fatalidade. "Na terra da liberdade individual de escolher, a opção de escapar à individualização e de se recusar a participar do jogo da individualização está decididamente fora da jogada".

Por enquanto, só estou curiosa pra chegar até o final da obra.

BAUMAN, Zygmunt. Modernidade Líquida. Trad. Plínio Dentzien - Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001.

segunda-feira, outubro 10, 2005

Cidadãos de bem?!

Engraçada essa forma maniqueísta de ver o mundo, não?!

Pessoas podem ser boas ou podem não prestar. Existem os corruptos e os incorruptíveis. Os honestos e os safados. Aqueles que são bonitos e os que são feios. E, finalmente, existem os cidadãos de bem e os bandidos.

Certamente que é inevitável usar esse tipo de classificação volta e meia, mas, alguma vezes, seria bom refletir um pouco sobre ela. Creio ser possível dizer que os bandidos surgem dos cidadãos de bem. Claro que alguém deve achar isso uma heresia e, por isso, provavelmente procura, a todo custo, comprovar, um dia, que tal característica de conduta tem origem e determinação genética.

Mas a verdade é que, potencialmente, cidadãos de bem podem ser bandidos. E, pasmem, o contrário também pode ser verdadeiro. Bandidos podem ser cidadãos de bem.

Não é que o limite seja muito nebuloso. Sendo que nos encontramos num Estado de Direito, a qualificação de uma conduta criminosa é relativamente clara. Roubar, fraudar, usurpar, extorquir, chantagear, violentar, matar. Mas esse trânsito entre ser uma coisa e outra pode ser mais ordinário do que se pensa.
...
JOSÉ ROBERTO
Que porra de veneno é esse que não mata ninguém? O cara garantiu que uma gota matava um cavalo. Não se pode confiar em ninguém, puta que pariu, que inferno, nessas horas tenho vontade de morrer.

LAVÍNIA
Faz o implante, querido, um homem ham hum fica muito infeliz quando ham hum quando hum ham não consegue mais cumprir suas obrigações.

JOSÉ ROBERTO
Você vai ou não vai morrer?

LAVÍNIA
Vamos fazer de conta que ham hum eu morri. Pronto, morri. (fecha os olhos e deita a cabeça pra trás.)

JOSÉ ROBERTO (jogando-se sobre Lavínia, agarrando-a pelo pescoço, fazendo-a cair ao chão junto com a cadeira. Ajoelhado, ele esgana Lavínia)
Ham hum e morreu mesmo ham hum ham hum ham hum haam huuum!

Os dois ficam caídos no chão, imóveis.

JOSÉ ROBERTO (levantando-se)
Veneno de merda.

José Roberto anda pela cozinha. Apanha distraído um pedaço de endive, põe na boca e cospe.

JOSÉ ROBERTO
Endive. Quem foi que inventou essa merda? (Ajoelha ao lado de Lavínia.) Lavínia, Lavínia! (Sacode o corpo de Lavínia.) Você não está brincando, está? (Coloca o ouvido no peito dela.) Caramba, matei uma inocente, matei uma santa! Vou me entregar. Confesso tudo, mereço ser castigado.
...
(Rubem Fonseca, Idiotas que falam outra língua em O Buraco na Parede)

Mas a questão é se continuaremos ou não tendo a possibilidade de sermos cidadãos de bem armados. Pois... se quer saber, eu digo sim. Sim à recusa dessa possibilidade e desse direito. Abdico desse suposto direito de defesa instrumentalizado por algo construído em oposição ao direito à vida. E também não acredito que nenhum regime fascista em potencial se sentiria intimidado se eu carregasse uma arma de fogo na cintura. "Cidadãos de bem". O que significa isso exatamente? E, que tal: "cidadãos de bem armados", uni-vos em nome do nosso direito de matar!

* esse blog engorda novamente o movimento de blogagem coletiva do Nós na Rede.