sábado, novembro 19, 2005

Furto

Tive minha carteira furtada no centro da cidade. Bom... até aí, nenhuma novidade.

O cara até foi - por mais absurda que possa parecer essa declaração - gentil. Catou meus cartões do banco e as duas folhas em branco de cheque que havia e largou minha carteira em um ponto de ônibus. Largou tudo! Fiquei impressionada. Documentos, cartões de visita, extratos, endereços, cartão de tipo sangüíneo, carteirinha da biblioteca e até meu cartão da locadora de vídeo (com créditos!!!) - que foi o que me salvou (alguém encontrou a carteira no ponto de ônibus, levou até um posto de gasolina, que entrou em contato com a locadora e que, por sua vez, ligou para mim).

Ao receber a notícia, contatei o banco. Fui em busca de meus documentos e dirigi-me à delegacia de polícia mais próxima. Foi aí que tive a maior surpresa do dia.

Um lugar pequeno, mal localizado, com mesas visivelmente velhas e precisando de cuidados, cadeiras com estofamento rasgado. Existiam dois computadores, mas um era só decorativo, já que só havia um policial de plantão - nitidamente exausto.

Nem precisei perguntar-lhe nada. Quando soube minha profissão, perguntou-me se eu iria colocar no jornal o absurdo abandono em que se encontra a estrutura da polícia civil na cidade. Contou-me que dos 5 postos policiais que existiam há pouco tempo, três foram fechados. Quando brinquei, dizendo-lhe que isso era uma boa notícia, pois deveria ter diminuído a "demanda", ele riu e disse: "Não. O que diminuiu foi o número de policiais mesmo." Ou seja, numa cidade de quase meio milhão de habitantes, há dois DPs abertos e cada um deles possui um policial de plantão. Descobri que Florianópolis, que tem significativamente menos habitantes que Joinville, conta com um corpo policial maior do que o dobro do daqui. Bom... vai ver é por isso que o poder local da cidade, "pupilo" do Governador do Estado, apóia com tanta veemência as iniciativas privatizantes de pessoas como os meus vizinhos.

Fiquei pensando... será que o ladrão de minha carteira não teria um "espírito coletivo" mais aguçado que as autoridades políticas de Santa Catarina?

quarta-feira, novembro 02, 2005

A segurança e a ignorância

De que a "alta" sociedade tem medo? De si própria?
"(...) Não sabemos se alguns acontecimentos ocorridos foram de seu conhecimento, sendo que após a construção de nova portaria, portanto nestes nem dois últimos anos, tivemos três ocorrências, inclusive ocorrências com boletim, sendo que a última aconteceu ainda há pouco em que as quatros horas da manhã um indivíduo sem camisa, descalço, aparentemente drogado ou com problemas mentais invadiu as nossas ruas por duas vezes, correndo e gritando, sendo que na primeira passou correndo pelo espaço aberto do portão, a ronda da Embrasp foi acionada conseguindo levá-lo para fora, mas em uma segunda entrada forçada, alguns momentos depois, a ronda não conseguiu localizá-lo, a polícia foi acionada e cinco viaturas fizeram procura por ele, mas provavelmente escondido em alguma residência do Parc, não foi localizado. (...)"
Correspondência oficial, encaminhada pela Associação em 9/09/2005.
Esse foi um pequeno trecho de uma correspondência elaborada pela vizinhança e enviada à minha casa. Para situar os leitores, moro em um lugar teoricamente público. As ruas, a iluminação, a rede de esgoto inexistente e, inclusive, a espécie de praça que está localizada nos arredores são públicos.

Há pouco mais de quinze anos, tive que me acostumar a morar no meio do mato, já que a grande maioria dos terrenos vizinhos à minha casa estavam cobertos pela vegetação. Com o passar do tempo, a área foi sendo ocupada e, especialmente nos últimos cinco anos, o número de construções se multiplicou em progressão geométrica. É claro que isso poderia ser muito bom não fosse um pequeno detalhe: a região passou a ser habitada por representantes ímpares da classe "abastada" da cidade.

Em pouco tempo, formou-se uma Associação, instituiu-se o medo de um inimigo invisível e articularam-se todos os novos moradores, que resolveram fechar a região e criar um condomínio fechado. Apesar da oposição expressa dos moradores de uma das casas do local (a minha), a Associação resolveu construir um grande e imponente portal na rua de acesso ao que eles chamam de Parc. Subindo o morro de minha rua, existia outro acesso que foi estrategicamente obstruído por plantas e tubos e, posteriormente, ganhou uma cerca. Mas, claro, a privatização daquele espaço público não poderia significar a perda de nenhuma das vantagens de ainda pertencer a esse mesmo espaço público. Coleta de lixo, manutenção elétrica, limpeza urbana e segurança pública ainda são serviços prestados com particular eficiência pelo governo municipal.

Guarita e portal, concluídos no primeiro semestre de 2004, fechando o acesso público a pouco mais de 100 mil metros
quadrados de área (segundo planta aprovada pela Prefeitura Municipal de Joinville em 30 de maio de 1980).


A pedra no sapato da Associação - moradores conhecidos como petistas - resolveu agir em defesa do que achava certo. Articulamos a justiça comum e o Ministério Público. Não era possível tal incongruência não ser abolida pela letra da lei. Afinal de contas, cada vez mais se torna necessário defendermos o espaço público nessa nossa sociedade corrompida pelo individualismo.

Outra vez impossível não recorrer a Bauman.
"Em suma: o outro lado da individualização parece ser a corrosão e a lenta desintegração da cidadania. Joël Roman, co-editor de Ésprit, assinala em seu livro recente (La démocratie des individus, 1998) que 'a vigilância é degradada à guarda dos bens, enquanto o interesse geral não é mais que um sindicato de egoísmos, que envolve emoções coletivas e o medo do vizinho'.
(...)
O 'público' é colonizado pelo 'privado'; o 'interesse público' é reduzido à curiosidade sobre as vidas privadas de figuras públicas e a arte da vida pública é reduzida à exposição pública de questões privadas e a confissões de sentimentos privados (quanto mais íntimos, melhor). As 'questões públicas' que resistem a essa redução tornam-se praticamente incompreensíveis."
BAUMAN, Zygmunt. Modernidade Líquida, p. 46.
Enfim... chegamos a um tipo de comunidade que não passa de um agregado de indivíduos.

Mas a justiça é lenta e o poder público é praticado por pessoas que fazem parte da tal sociedade "abastada" da cidade. A prefeitura, sabendo do problema, não embargou a obra do portal quando podia. Nem fez esforço algum para derrubar a construção ilegal. Parece que o Poder Executivo Municipal não estava muito interessado em manter aquele espaço como público.

Apelamos ao Poder Legislativo também. Informamos a todos os vereadores o que estava pra acontecer em um dos espaços mais visitados por famílias nos finais de semana. Na verdade, um deles, o vereador Darci de Matos (PFL), atual presidente da Câmara, já estava sabendo do caso, sendo que o vi reunido com os integrantes da Associação numa recreativa que foi construída dentro do Parc, também em terreno público.

Uma das atrações do Parc.

Depois de algum tempo, duas coisas aconteceram. A Associação foi considerada como de utilidade pública pelo Poder Legislativo local e o vereador Darci de Matos apresentou um projeto na Câmara.
Ruas sem saída
O vereador Darci de Matos apresentou um projeto na Câmara propondo mudanças na lei que autoriza os moradores a fecharem ao trânsito as ruas 'sem saída'. Pelo proposto por Darci, as ruas só poderão ser fechadas se 80% dos moradores concordarem. Mas então já existe uma lei que permite o fechamento ao trânsito, privatizando um espaço público?
Enfim... não creio que essa seja uma ação a favor do interesse público.

A Associação parece ter vários trunfos a seu favor: o efetivo silêncio do Poder Executivo, a simpatia do Poder Legislativo e a morosidade do Poder Judiciário. Bom, se não existisse a instituição do impedimento, que proíbe o juiz de exercer as suas funções no processo de que for parte, poderia existir mais uma carta na manga desses moradores equivocados da minha vizinhança. Um deles é magistrado.

Se a tal lei for aprovada, a Associação nem precisará da anuência de nossa casa vermelha. Afinal de contas, há algum tempo não representamos 20% dos moradores desse lugar. Somos minoria. Isso é fato. Apesar de lutarmos por uma questão pública, pelo respeito à legislação ainda vigente no país, somos minoria naquele universo de privilegiados arrogantes.

Como se isso não bastasse, assistindo ao jornal local da RBS (repetidora da Globo) na noite de ontem, uma matéria sobre o aumento da incidência de assaltos a domicílio na cidade de Florianópolis chamou a atenção para dois casos que aconteceram recentemente: um, num muito bem cercado condomínio fechado, cuja guarita possui segurança muito mais que reforçada, e outro, numa rua citada pela reportagem como "de classe alta". Será que um daqueles vizinhos tomou conhecimento disso? Será que entendem todas as implicações dessa privatização que se empenham tanto em realizar?

O que intriga mesmo é a justificativa para tanta preocupação. Eles se sentem aterrorizados por um homem "aparentemente drogado", "descalço", "sem camisa". Conseguiram mobilizar cinco viaturas policiais para caçar o indivíduo suspeito. Eles têm medo do estranho.

O que vem a seguir certamente vale à pena.
George Hazeldon, arquiteto inglês estabelecido na África do Sul, tem um sonho: uma cidade diferente das cidades comuns, cheia de estrangeiros sinistros que se esqueiram de esquinas escuras, surgem de ruas esquálidas e brotam de distritos notoriamente perigosos. A cidade do sonho de Hazeldon é como uam versão atualizada, high tech, da aldeia medieval que abriga detrás de seus grossos muros, torres, fossos e pontes levadiças uma aldeia protegida dos riscos e perigos do mundo.
(...)
Se você puder se dar ao luxo de comprar uma casa em Heritage Park, pode passar boa parte de sua vida afastado dos riscos e perigos da turbulenta, hostil e assustadora selva que começa logo que terminam os portões da cidade. Tudo o que uma vida agradável requer está lá: Heritage Park terá suas próprias lojas, igrejas, restaurantes, teatros, áreas de lazer, florestas, um parque central, lagos com salmões, playgrounds, pistas de corrida, campos de esportes e quadras de tênis - e área livre suficiente para se acrescentar o que quer que a moda de uma vida decente possa demandar no futuro. Hazeldon é bastante explícito quando esclarece as vantagens de Heritage Park sobre os lugares onde a maioria das pessoas vive hoje em dia: 'Hoje a primeira questão é a segurança. Queiramos ou não, é o que faz a diferença.'
BAUMAN, Zygmunt. Modernidade Líquida, p. 107-108.
Tudo gira em torno da "política do medo cotidiano".
A capacidade de conviver com a diferença, sem falar na capacidade de gostar dessa vida e beneficiar-se dela, não é fácil de adquirir e não se faz sozinha. Essa capacidade é uma arte que, como toda arte, requer estudo e exercício. A incapacidade de enfrentar a pluralidade de seres humanos e a ambivalência de todas as decisões classificatórias, ao contrário, se autoperpetuam e reforçam: quanto mais eficazes a tendência à homogeneidade e o esforço para eliminar a diferença, tanto mais difícil sentir-se à vontade em presença de estranhos, tanto mais ameaçadora a diferença e tanto mais intensa a ansiedade que ela gera.
(...)
O perigo respresentado pela companhia de estranhos é uma clássica profecia autocumprida. Torna-se cada vez mais difícil misturar a visão dos estranhos com os medos difusos da insegurança; o que no começo era uma mera suposição torna-se uma verdade comprovada, para acabar como algo evidente.
BAUMAN, Zygmunt. Modernidade Líquida, p. 123-124.
E a finalização da carta que minha casa vermelha recebeu dos vizinhos líquidos não poderia ser diferente:
"Somos, ainda, sabedores que os processos contra a Associação já estão em andamento, mas gostaríamos de que, se possível, após todos estes relatos, houvesse a possibilidade de V.sas voltarem a repensar sobre a adesão à guarita, que têm como objetivo a segurança de moradores e nada mais."
Correspondência oficial, encaminhada pela Associação em 9/09/2005.

Eu confesso. Tenho medo da possibilidade de estar trancada com meus vizinhos num mesmo espaço. Tenho medo da possibilidade dessas criaturas comprarem armas legais. Tenho medo da "liberdade" que eles adquiriram nos últimos tempos, que os faz achar que podem fechar a rua de acesso à minha casa para as festas que realizam nos finais de semana. Tenho medo de pedir licença, de forma cada vez mais freqüente, para passar. Tenho medo da idéia que eles têm de segurança. Tenho medo do medo que eles têm da cidadania.

* fotos por Amanda Máximo (02/11/2005).