Embora seja bastante complicado adubar searas alheias, creio ser uma boa forma para dividir incompreensões.
Tenho andado com a Carta Magna brasileira debaixo do braço. Poderia até parecer uma atitude muito nobre, um caminho em direção à mais completa e distinta cidadania, mas confesso que meus objetivos são mais pragmáticos e simplistas: a obtenção de um cargo público. Na verdade, as razões que me levam a buscar tal posição poderiam até dar um texto mais digno, mas isso é outra história.
Minha angústia é muito particular e pode ser desenvolvida em poucas linhas.
Lia o artigo 3º do texto constitucional, que fala sobre os objetivos fundamentais de nossa república (é importante comentar que a versão que tenho da Carta foi editada pela Revista dos Tribunais, que tem um cuidado impressionante com a indicação da legislação correlata a cada artigo, inciso ou parágrafo de lei). Logo após a leitura do inciso III, que caracteriza como objetivos fundamentais do país "erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais", fui orientada a buscar os artigos 79 a 81 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, modificados pela Emenda Constitucional 31, de 14 de dezembro de 2000. O objetivo dos tais artigos é instituir o Fundo de Combate e Erradicação da Pobreza, que seria regulmentado por lei complementar, para custear ações suplementares de nutrição, habitação, saúde, educação, reforço de renda familiar... O que quero destacar é o parágrafo único do artigo 79: "O Fundo previsto neste artigo terá Conselho Consultivo e de Acompanhamento que conte com a participação de
representantes da sociedade civil, nos termos da lei".
Sempre achei que a expressão "nos termos da lei" fosse meio sarcástica. É como se nossos legisladores sempre procurassem deixar uma frestinha, um espaço de indefinição.
Nova orientação: ver Lei Complementar n.º 111, de 6 de julho de 2001. Esta foi a lei que determinou a utilização do Fundo de Combate e Erradicação da Pobreza para programas como o Bolsa Escola e o Bolsa Alimentação. Foi aí que encontrei o nó: art 4º - "Fica instituído o Conselho Consultivo e de Acompanhamento do Fundo de Combate e Erradicação da Pobreza, cujos membros serão
designados pelo Presidente da República, com a atribuição de opinar sobre as políticas, diretrizes e prioridades do Fundo e acompanhar a aplicação dos seus recursos".
Meu ponto é: como pode um conselho consultivo ter real representação da sociedade civil se seus membros são designados pelo Presidente da República? Tudo bem que o Presidente é legitimado pelo sufrágio universal, mas não creio que isso justifique. O parágrafo único do artigo 4º é intrigante: "Ato do Poder Executivo regulamentará a composição e o funcionamento do Conselho de que trata este artigo, assegurada a representação da sociedade civil". Fico imaginando como será a composição atual do Conselho do Fundo. Fico imaginando que, se tivéssemos políticos com moral duvidosa (o que nunca foi o caso do Brasil), poderíamos correr o claro risco do Presidente escolher comparsas seus para comporem o grupo que exerce o acompanhamento e a fiscalização da aplicação dos recursos. Claro... são só hipóteses.